A Amazônia Real ouviu especialistas que são da região amazônica ou trabalham com ela para saber as expectativas em relação ao terceiro mandato do ex-presidente.
A reportagem é de Elaíze Farias, Kátia Brasil, Eduardo Nunomura, Cícero Pedrosa e Nicoly Ambrosio, publicada por Amazônia Real, 01-11-2022.
Juntar os cacos. Assim resume Marly Lúcia da Silva Ferreira, secretária nacional de mulheres da Confederação Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas (Confrem) sobre o que pensa do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência da República. Marivelton Baré, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), segue a mesma linha: o ano de 2023 representa “uma reconstrução de tudo aquilo que perdemos”. Um grande alívio, prefere o Prêmio Nobel da Paz, Philip M. Fearnside. Mas o cientista, também colunista da Amazônia Real, acrescenta: “Esta vitória não significa que a Amazônia esteja ‘salva’”.
A reportagem ouviu dez especialistas de diferentes áreas, todos com atuação na Amazônia, para dar suas primeiras impressões sobre a vitória do candidato do PT sobre Jair Bolsonaro (PL). No domingo, em seu primeiro pronunciamento à Nação, Lula destacou o protagonismo da região amazônica em seu novo governo. Ele prometeu lutar pelo desmatamento zero da Amazônia, algo que não conseguiu em seus dois mandatos anteriores, e reiterou que vai retomar o monitoramento e a vigilância da Amazônia, combatendo o garimpo, a mineração, a extração de madeira ilegais e a ocupação agropecuária indevida. Sinalizou também com a abertura para cooperações internacionais, seja em investimento ou pesquisa científica. “Temos compromisso com os povos indígenas, com os demais povos da floresta e com a biodiversidade. Queremos a pacificação ambiental. Não nos interessa uma guerra pelo meio ambiente, mas estamos prontos para defendê-lo de qualquer ameaça”, afirmou o presidente eleito para um inédito terceiro mandato, em discurso milimetricamente construído e lido.
Amanda Michalski, geógrafa e pesquisadora da Universidade Federal de Rondônia (Unir), e Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, apontam a necessidade de o presidente eleito sinalizar prontamente para o mundo o papel de protagonista do Brasil nos debates sobre a mudança climática. “Seria muito importante que o Lula já fizesse algum recado para essa agenda de meio ambiente por conta da proximidade da Conferência do Clima”, diz Astrini. “Temos a consciência de que a luta e resistência pela Amazônia deve continuar se fortalecendo”, afirma Amanda. “O Brasil virou uma espécie de exemplo negativo não só na epidemia de Covid-19, mas também nas políticas de não conservação do meio ambiente”, acrescenta Jesem Orellana, epidemiologista da Fiocruz-Amazônia. Leia a seguir as falas dos entrevistados ouvidos pela Amazônia Real:
Philip Martin Fearnside, ecólogo e pesquisador do Inpa
Foto Alberto Cesar Araujo/Amazônia Real
A eleição de Lula no lugar de Bolsonaro é um grande alívio para todos que se preocupam com a floresta amazônica e as populações que dependem dela. Oferece a perspectiva de melhorias urgentes para o meio ambiente, a proteção de povos indígenas, e a recuperação de ciência, educação e outras áreas. No entanto, é importante ressaltar que esta vitória não significa que a Amazônia esteja “salva” e que fica desnecessário uma vigilância e pressão constante para evitar grandes impactos na região. Áreas de preocupação incluem a construção de barragens (Lula fez Belo Monte), a consulta de povos indígenas conforme a OIT-169 e a lei brasileira (vide Belo Monte e outras obras), a tendência de legalizar reivindicações fundiárias em terras públicas (vide a primeira “lei da grilagem” em 2004), a possibilidade de aprovar licenças para grandes obras por pressão política (vide a história das barragens no rio Madeira e de Belo Monte) e a possibilidade de permitir obras como a rodovia BR-319 com base na presunção de um futuro com governança (vide a fala de Lula em Manaus). Assim, precisa-se que haja esforço para ajudar a guiar a atuação do governo da melhor maneira possível.
Ane Alencar, pesquisadora do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Ipam)
Foto: Ivan Cananbrava/ Ipan
Espero que ele traga para a Amazônia a governança necessária para combater o crime organizado que tem ocupado de forma ilegal as terras públicas. Ao mesmo tempo, para fortalecer as terras indígenas, as unidades de conservação, contra o garimpo e a exploração madeireira ilegal. Para que isso aconteça, é preciso que haja uma harmonia de atuações entre as diversas instituições, tanto do governo federal quanto dos governos estaduais, que atuam na área de comando e controle. Que as operações que sejam realizadas sejam fortes, que consigam pegar os cabeças dessas quadrilhas do crime organizado. Desse modo, desincentivar a continuidade da ocupação ilegal e da especulação de terras na região. Isso vai representar uma redução muito significativa no desmatamento, visto que pelo menos, um pouco mais da metade de tudo que vem sendo desmatado na região tem sido desmatado em terras públicas. É claro que não somente uma fiscalização e uma governança melhorada vão dar conta do recado. É fundamental que haja também políticas públicas que incentivem uma produção sustentável para que os produtores da Amazônia se sintam num caminho da sustentabilidade. E isso acaba por reduzir o desmatamento e os problemas ambientais que a região está enfrentando.
Marivelton Baré, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro
Foto: Paulo Desana/Dabakuri/Amazônia Real
Primeiro, viva a democracia. Agora temos democraticamente o presidente Lula eleito. A gente espera que ele possa buscar reconstruir toda uma política de direito de Estado para os povos indígenas, que foi brutalmente acabada e desconstruída ao longo desse governo do Bolsonaro. Perseguição, invasão, desmatamento alto, criminalização de lideranças. A gente espera um novo rumo. Onde a gente tenha um espaço democrático de direito voltando. Onde a gente tenha reconstrução participativa desse Ministério Indígena. Onde a gente tenha também a Funai sendo assumida para os povos indígenas. Ou seja, de modo as pastas que são para trabalhar com os povos indígenas que sejam os próprios indígenas fazendo parte dela nessa construção participativa. Seja no controle social, seja na implementação das ações. Seja no protagonismo da política de gestão ambiental e territorial das terras indígenas, com respeito aos protocolos de consulta dos povos e comunidades do Brasil. E o respeito garantido ao nosso modelo de organização indígena, a partir das federações, das associações, das articulações e coordenações. A gente espera uma reconstrução de tudo aquilo que perdemos. A gente tem a perspectiva de que o nosso presidente eleito vai fazer história como nunca foi feita, com protagonista indígena, neste País.
Amanda Michalski, geógrafa e pesquisadora da Universidade Federal de Rondônia (Unir)
Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal
A vitória de Lula significa um fortalecimento da aliança mundial pela Amazônia e pelas medidas no enfrentamento à crise climática. Além disso, acreditamos que o próximo governo manterá abertos muitos espaços para diálogos que possibilitem a construção de políticas públicas que atendam às especificidades e particularidades dos povos originários e comunidades tradicionais. Temos a consciência de que a luta e resistência pela Amazônia deve continuar se fortalecendo, uma vez que existem diversos agentes e sujeitos que continuam exercendo suas forças em busca de uma homogeneização socioterritorial e cultural da Amazônia, ou seja, negando os direitos aos múltiplos territórios que aqui existem. O Brasil é um só, o povo é um só, mas somos, como Norbert Elias disse, uma “sociedade de indivíduos”. Lula deve governar para o todo, mas sempre garantindo o direito individual e coletivo da sociedade brasileira. Além disso, os movimentos e organizações sociais e demais instituições voltadas aos direitos humanos e socioterritoriais finalmente estão se mobilizando em rede. Isso significa que os próximos dias serão dias de luta e enfrentamento para que nossa democracia não volte a ser atacada como tem sido nos últimos quatro anos. Uma das provas de que os movimentos sociais e organizações sociais continuam se mobilizando juntamente, é a campanha Despejo Zero, que está articulada para que as famílias afetadas com o fim da ADPF 828 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), que suspendia os despejos no campo e na cidade, sejam devidamente atendidas pelo Estado. Essa é apenas uma das campanhas e mobilizações que continuarão sendo realizadas. Temos muita confiança no presidente Lula, mas não nos calaremos diante a injustiças desse sistema que nega direitos básicos aos filhos e filhas dessa nação.
Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima
Foto: Reprodução/ Márcia Alves
Lula já assume um compromisso com o povo brasileiro de buscar a união, o diálogo e principalmente de ter como sua prioridade a eliminação da fome. Precisamos lembrar que em 2021, comparado a 2020, tivemos uma marca medieval de crianças menores de 5 anos morrendo por desnutrição. Tivemos vários problemas durante a pandemia, não somente em relação a mortes diretas por Covid-19. Infelizmente tivemos um distanciamento muito grande de atores importantes, como o G20, os países mais ricos do mundo, nos distanciamos de metas de conservação do meio ambiente, de conservação da Amazônia e de outros biomas brasileiros sob a gestão do governo Bolsonaro. Esse governo desmatou de forma implacável, queimou e destruiu os nossos biomas, sobretudo a Amazônia, permitindo garimpo ilegal, extração ilegal de madeira, invasão de terras indígenas e territórios de conservação.
A vitória do presidente Lula representa esperança, uma esperança não só para enfrentar a fome, mas para enfrentarmos o problema da precariedade das condições de trabalho do povo brasileiro para crescermos enquanto nação e economicamente e reposicionar o Brasil na cena internacional, mas também no sentido de tirar o Brasil dessa condição de pária ambiental. O Brasil virou uma espécie de exemplo negativo não só na epidemia de Covid-19, mas também nas políticas de não conservação do meio ambiente. Vejo com muita esperança a volta do presidente Lula à presidência com a agenda de combate a fome, de valorização do SUS e dos programas de saúde pública. Tenho certeza que essa experiência, esse conhecimento e esse engajamento que os governos do PT tiveram podem tranquilamente ser retomados mais uma vez. O Brasil ganha e se fortalece com isso, e mais do que tudo, a democracia e o voto da população brasileira fizeram total diferença e representam uma nova guinada no sentido de buscarmos a preservação do meio ambiente, de buscarmos eliminar a fome, de buscarmos condições dignas de trabalho para a população, e numa forma geral, buscar a reconciliação nacional.
Jesen Orellana, epidemiologista da Fiocruz-Amazônia
Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal
Lula já assume um compromisso com o povo brasileiro de buscar a união, o diálogo e principalmente de ter como sua prioridade a eliminação da fome. Precisamos lembrar que em 2021, comparado a 2020, tivemos uma marca medieval de crianças menores de 5 anos morrendo por desnutrição. Tivemos vários problemas durante a pandemia, não somente em relação a mortes diretas por Covid-19. Infelizmente tivemos um distanciamento muito grande de atores importantes, como o G20, os países mais ricos do mundo, nos distanciamos de metas de conservação do meio ambiente, de conservação da Amazônia e de outros biomas brasileiros sob a gestão do governo Bolsonaro. Esse governo desmatou de forma implacável, queimou e destruiu os nossos biomas, sobretudo a Amazônia, permitindo garimpo ilegal, extração ilegal de madeira, invasão de terras indígenas e territórios de conservação.
A vitória do presidente Lula representa esperança, uma esperança não só para enfrentar a fome, mas para enfrentarmos o problema da precariedade das condições de trabalho do povo brasileiro para crescermos enquanto nação e economicamente e reposicionar o Brasil na cena internacional, mas também no sentido de tirar o Brasil dessa condição de pária ambiental. O Brasil virou uma espécie de exemplo negativo não só na epidemia de Covid-19, mas também nas políticas de não conservação do meio ambiente.
Vejo com muita esperança a volta do presidente Lula à presidência com a agenda de combate a fome, de valorização do SUS e dos programas de saúde pública. Tenho certeza que essa experiência, esse conhecimento e esse engajamento que os governos do PT tiveram podem tranquilamente ser retomados mais uma vez. O Brasil ganha e se fortalece com isso, e mais do que tudo, a democracia e o voto da população brasileira fizeram total diferença e representam uma nova guinada no sentido de buscarmos a preservação do meio ambiente, de buscarmos eliminar a fome, de buscarmos condições dignas de trabalho para a população, e numa forma geral, buscar a reconciliação nacional.
Raimundo Magno, assessor quilombola da Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará (Malungo)
Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal
A expectativa da população quilombola do Brasil e da Amazônia é de novos tempos. Primeiro, uma nova forma de fazer política para sociedade de forma inclusiva e democrática, olhando para os que mais necessitam. E entre os que mais necessitam estão os povos e as comunidades tradicionais, que ao longo da história do Brasil foram deixadas à margem das políticas públicas. Esperamos que este governo possa reparar o atraso, reparar todas as mazelas que as populações tradicionais, em especial os quilombolas, vivem por conta desse racismo institucionalizado. É lógico que sabemos que não será tão fácil, mas será possível reconstruir um Brasil que seja capaz de contemplar a todos.
Marly Lúcia da Silva Ferreira, secretária nacional de mulheres da Confrem
Foto: Cícero Pedrosa Neto/ Agência Pública)
A esperança é que se reorganize tudo aquilo que se perdeu. Que consigamos juntar os cacos e seguir. Há muita preocupação com o que possa vir da Câmara Federal, mas acreditamos que pelo menos teremos um presidente voltado às questões que envolvem as minorias que foram deixadas de lado, a Amazônia e seus povos. Conseguimos derrotar o fascismo no Executivo, mas precisamos estar atentas às dificuldades que ainda virão. Vamos precisar de apoio, somar forças, para restaurar a dignidade dos povos tradicionais e dos pobres deste País, e salvar o que ainda resta dos nossos mangues, da nossa biodiversidade e da floresta.
Carlos Durigan, diretor da WCS Brasil
Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real/2015
Nos últimos quatro anos, vimos e testemunhamos um desmonte completo das estruturas da gestão pública, em especial as políticas socioambientais para a Amazônia. Foi um processo catastrófico, que tem a ver inclusive com a intenção do governo Bolsonaro, que já pretendia extinguir o Ministério do Meio Ambiente e transformá-lo em uma pasta do Ministério da Agricultura. Houve o aparelhamento dos órgãos de gestão, em especial da Funai, Fundação Palmares, do ICMBio e Ibama. Temos que reestruturar esses órgãos e a partir daí reconstruir as agendas que estavam em curso, como o Plano de Prevenção e Controle ao Desmatamento, o Programa Nacional de Resíduos Sólidos, dos objetivos do desenvolvimento sustentável, o qual o Brasil é signatário e tem compromissos assumidos, e as de emergência climática. O primeiro grande desafio hoje é reestruturar as políticas públicas socioambientais e assim retomar a agenda positiva para toda a Amazônia que foi simplesmente abandonada e destruída pela gestão atual.
E o segundo grande desafio é que tivemos um momento de crimes ambientais envolvendo não só o desmatamento, mas também a ocupação ilegal de terras públicas, o garimpo ilegal que cresceu de forma acentuada juntamente com os índices de violência na Amazônia, inclusive com o aumento de conflitos relacionados ao crescente narcotráfico que domina muitas regiões. Temos também uma necessidade de estruturar novos projetos voltados ao desenvolvimento sustentável regional. Foram paralisados projetos de desenvolvimento sustentável, geração de renda, engajamento de comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais, agricultura familiar e ocupação ordenada do território. Estamos em um momento crítico, o desmatamento alcança grandes números com extensas áreas sendo queimadas e desmatadas, temos uma contaminação de mercúrio e agrotóxicos nas principais bacias hidrográficas da região Amazônica crescendo e um desafio grande nos espaços urbanos. Precisamos ter políticas positivas e uma é engajar novamente a sociedade regional e amazônida, o setor acadêmico, o poder público dos estados e municípios.
Neidinha Suruí, fundadora da Kanindé Ambiental
Foto: Reprodução/ Acervo pessoal
Eu espero muito que a partir de 1º de janeiro que a Amazônia comece a realizar o que a gente propôs para o programa do Lula, que é o combate às invasões das terras indígenas, retirar os invasores das terras, ter fiscalização para a proteção dos territórios e que haja realmente um apoio maior para os povos indígenas, a criação do Ministério Indígena que é algo que vai ser simbólico nesses 522 anos de invasão aos territórios indígenas. Mas precisa ter fortalecimento, mudança e uma reestruturação da Funai que não pode continuar do jeito que está, ela está desestruturada. A gente precisa fortalecer a saúde indígena que é um caos, melhorar o atendimento, a educação. A gente tem muita coisa para fazer.
Também sei que não vai ser fácil para o Lula, esses bolsonaristas vão fazer de tudo para atrapalhar o governo. Tem muito problema que precisa ser solucionado e o Lula vai precisar muito do apoio dos movimentos sociais, do povo para conseguir governar e eu estou aqui, nós estamos aqui prontos para colaborar, para ajudar. Fiquei muito feliz vendo que a Noruega e a Alemanha já se dispuseram a apoiar com recurso o Fundo da Amazônia. É um bom sinal para a proteção das unidades de conservação e das terras indígenas. O movimento indígena está forte e vai continuar cada vez mais forte.
A gente precisa estar junto, todo mundo unido e trabalhando, todos os movimentos e contamos muito com a imprensa também para conseguir avançar com o que a gente propõe. Nós estamos em um estado bolsonarista aqui, o atual presidente ganhou com 70%, o governador que ganhou tinha por decreto, na sexta-feira, acabado com uma unidade de conservação. Isso já é um indicativo de que precisamos estar alerta e lutar para defender as áreas protegidas no estado. Basicamente nós vamos ter muito trabalho nesses quatro anos, mas eu acredito que a gente consiga vencer e ter conquista.